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TEMA O TROVÃO

O QUE MOVIMENTA UMA HISTÓRIA? O TEMA?

As personagens? O texto? Do que, afinal, é feita uma história? E a que ela serve? A quem ela serve? Ou será que uma história é serva de si mesma? E se, pensando desse modo, sendo verdade que a ficção imita a vida e o vice-versa, a vida em si – as ações reais de pessoas reais no mundo real – é feita de que, serve a que e serve a quem? Qual o sentido de uma vida?

São muitas questões que figuravam na mente de David naquela noite. Ele estava lá, sozinho, por volta de umas nove horas, sentado no corredor em frente à porta de seu apartamento no segundo andar, com os olhos no movimento da água da piscina bem no meio de toda a área de lazer daquele complexo de apartamentos.

A vida era banal. No melhor dos sentidos, ainda era banal. Nada de excepcional e a ciência... Ah, a ciência andava rápido, mas tecnologia não fazia da vida algo menos banal. A ciência não conseguiu desvendar seu sentido. E tamanha era a banalidade de tudo, que sem sentido era pensar sobre essas coisas. O que ele queria dizer era que, se a água da piscina forma ondas em sua superfície com o vento leve da noite, é porque algum fenômeno físico acontece, mas a onda por si só não tem funcionalidade, sentido e finalidade. A onda é consequência, logo, manipulada por sua causa e dela dependente até o momento de sua morte.

O que preocupava David, de fato, era que essa falta de sentido da vida fosse tão banal quanto à falta de sentido da onda. O que o preocupava era a possibilidade da vida humana existir como consequência de fenômenos físicos e ser manipulada por tal causa e dela dependente até o momento de sua morte. Se fosse assim, a angústia esmagaria seu coração com uma pressão desmensurada. O vazio que havia em seu peito, a falta, a ausência, o rompimento repentino que o perseguia há tanto tempo.

Felizmente, o sentido surgiu naquele instante, como um relâmpago no horizonte. Literalmente, foi um relâmpago, trovões, e uma chuva fina que caía do céu... Ainda que David jurasse que não tinha nuvem alguma ali e a água viesse inexplicavelmente.

De qualquer forma, era um abalo em toda a atmosfera do complexo. O vento acelerando, a água caindo, o barulho de tempestade, as árvores se dobrando e deixando suas folhas circularem livres, as ondas da piscina transbordando... David pôs-se de pé imediatamente, tapando a cara e evitando a água ventada de lhe atingir a face. Abriu a porta do seu apartamento, mas foi quando as luzes também começaram a agir estranho. Todo o circuito elétrico começou a falhar, oscilar e uma rajada precisa de vento passando pelo corredor atingiu o corpo esguio de David, arrepiando-o, assustando-o até.

Havia algo ali. Algo que não queria ser visto, que não podia ser visto. David olhava de um lado para outro, olhava para a piscina, para o pátio, para os outros apartamentos do outro lado do pátio, para cima, para cada janela, mas não achava o que devia achar, não achava o que não queria ser achado. Era como se estivesse cego. E sentia algo fisicamente ali. Um estranhamento nas costas, nos ombros, na altura do ouvido, como se algo lhe agarrasse, quase sussurrasse.

Cada trovão, com um relâmpago, iluminava tudo em uma luz azul muito fina, e foi então que David viu o que devia. As sombras apareciam apenas à luz dos raios. O rapaz congelou por uns instantes, esperando o próximo relâmpago, com o corpo encostado no parapeito e os olhos fixos na parede para qual estava de costas há pouco. E a próxima luz azul surgiu, segundos apenas foram suficientes para uma das visões mais perturbadoras que ele já teve. Por todo o corredor, em toda parede, contornos, sombras, foram revelados, corpos adultos, vultos borrados, lado a lado, aglomerados... O que quer que lá estivesse, podia fugir do olhar, mas não da luz intensa.

David, aterrorizado, caiu de costas para o jardim dois andares abaixo, no pátio. Assim que tocou o chão, pensou se devia se mexer e correr ou ficar parado. Correu. Rápido, preciso, sem olhar para trás, conforme outro raio iluminou tudo e ele pode ver no bloco de apartamentos à frente, nos corredores dos cinco andares que se erguiam, sombras, e dessa vez ele as pode ver se mover. Seu medo maior era se as sombras sabiam que ele as havia visto.

Então, sem perceber, David correu para o lugar errado e se atirou na água da piscina. Era morna, mas ainda assim gelada. Ele tentou correr de volta, mas a água era mole e ele só afundou, mergulhou estranhamente. Outro raio revelou para ele os vultos refletidos na superfície da água, mais borrados dessa vez, pois ele os via por meio da própria água.

 

Mas esse não era o começo de uma história, tampouco o que a movimentava, era o fim, o efeito colateral. A história, ela própria, começara muito antes de David e ia muito além de sua angústia.

 

A Guerra de Gigantes­

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